decabelosempe.blogspot.com de cabelos em pé: 22 de Agosto de 1989

de cabelos em pé

Mais ou menos um diário de opiniões. Nem sempre diário, mas de opiniões sim.

quarta-feira, agosto 22, 2007

22 de Agosto de 1989


Há 18 anos atrás tive uma das mais fantásticas (?) experiências. Passei 24 horas de castigo no hospital de São José a ressacar de um traumatismo craniano com amnésia e perda de conhecimento.
Passar tantas horas sempre deitado numa maca, tal como nosso senhor nos mandou vir, sem conhecer ninguém nem o que se estava a passar, é aterrador.
Tudo começou num passeio de bicicleta na minha Charneca, espatifei-me num pinhal (não foi num pinheiro, foi mesmo no chão) e a seguir acordei em casa do vizinho do lado.
Depois foi aquele vai-vem do:
quem sou eu?
que dia é hoje?
então e os meus pais? ainda ontem estava na covilhã e agora não sei onde estou.

Como a coisa ( a caixa craniana) não ia ao lugar, toca de meter 1,80 todo esfolado num mini a acelerar para o hospital de Almada. Nesta parte lembro-me dos meus joelhos bem vincados no tablier. Em 1989, o hospital de Almada era lá bem no centro da cidade e a cair aos bocados e ainda bem, porque se já fosse o Garcia de Orta, ainda me assustava quando visse o Cristo-rei de braços abertos, porque no meu estado tão sensível, ainda pensava que estava á minha espera.

Passado não sei quanto tempo com a cabeça mal assente em cima dos ombros, resolvem mandar-me de ambulância para Lisboa.
"vem a chegar um acidentado de Santiago do Cacém e tu segues com ele para seres visto por um neurologista, está bem?"
Tinha que estar.

Quem não estava bem era o outro que já vinha de longe, em coma, com uma viga de aço espetada no pescoço. Aqui lembro-me de passar a viagem a espreitar para o sócio (é aquela curiosidade mórbida que persegue o português e que não nos abandona nem em estados de amnésia).
Quando saí da ambulância tinha os meus pais e a minha avó á espera.
Diz o meu pai - Então pá, como é que fizeste isso?
Depois a minha mãe - !?!?!? - não conseguiu falar e eu não consigo descrever a cara dela quando viu a minha toda esfolada e cheia de sangue. Estão a imaginar o coração de uma mãe nestas alturas, não estão?
A minha avó, só chorava coitada, nem conseguia falar.
Começou então a amnésia a falar por mim.
- eh pá tens que tomar conta das mulheres, pá!

Já de noite, no corredor* da observação, que me deu abrigo por um dia, aparece-me um médico simpático,
- então pedro? estive agora a falar com o teu pai
- ai é? (olha tenho pai) então já me posso ir embora, porreiro.
- não, ainda não, tens que ficar em observação até amanhã
- e ele não pode vir cá? (já agora para ver se é o mesmo que estava lá fora e para conhecer o gajo, pensei eu)
- não, amanhã falas com ele, tá bem?
- (pois, tem que estar)

Se há capacidade que aprecio na minha pessoa é o facto de conseguir nos lugares e alturas mais estranhas. Resolvi então passar pelas brasas até ouvir o primeiro grito típico das salas de urgência dos hospitais.

"aaaii, agarrem-me essas putas que vão toda a fugir"
Acordei com um cagaço daqueles, a pensar que as enfermeiras (isto sem qualquer desprestígio para a classe) tivessem deixado o velho com a arrastadeira suja, ou sem comer, não sei. Afinal não, quando olhei para o lado havia um doente com alguns 120kg deitado numa maca, atado pelas mãos, com aterosclerose que delirava com a agricultura,
"agarrem as putas, lão vão as ovelhas e as cabras todas a fugir, aaai"
Foi assim toda a noite, o velho atrás das borregas e eu atrás de sossego para descansar a pituitária.

Durante a minha estadia, provei o pior arroz à valenciana e o pior pequeno almoço da vida, de tal maneira que já nem quis sentir o cheiro do almoço. Sinceramente, bem pior que na tropa.

Quando ao fim da tarde tive alta e vi o meu pai a aproximar-se com um saco de roupa pensei, afinal eu conheço o gajo, é o zé gonçalves da picheleira.
- Afinal como é que tu te espalhas-te pedro?
- Sei lá pá. Olha, vamos para casa que eu tou cheio de fome?

* as salas de observação eram exclusivamente para senhoras, os homens ficavam todos no corredor.

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