decabelosempe.blogspot.com de cabelos em pé: Maria da Água

de cabelos em pé

Mais ou menos um diário de opiniões. Nem sempre diário, mas de opiniões sim.

quarta-feira, maio 23, 2007

Maria da Água

O meu puto do meio, o nº2, ontem, antes de se deitar dizia-me,
- pai, sabes que és o meu melhor amigo? (isto deixa um gajo babado de tal maneira que se fica sem resposta)
- e o teu melhor amigo, quem é? (continuou o cabrito)
- então, o meu melhor amigo és tu
- eu? só?
- pois, és tu e o mano
- sem sermos nós
- olha, o avô zé também é uma grande amigo
- oh pai, sem ser da família (ou seja, o gajo distingue perfeitamente o que é tropa fandanga dos amigos)
- é o tio lança?
- é
- e o fanã?
- também (foi desfolhando o rol, embora não conheça na verdade muitos amigos do pai porque também não os há)
Vem isto a propósito de um amigo, que de caminho também é meu pai e que esta semana está em estágio nas caldas, ter-me dado um recorte de jornal para publicar quando soube da intenção que eu tinha de falar neste blogue sobre figuras da picheleira, assim tipo, zé cereja, leão, maria dos piascos, cô, maria cabrita, blé, olho de peixe espada, pôna, 27, etc...Aqui fica, com a colaboração do Zé Gonçalves.
CARTAS AO DIRECTOR
Primeiras Damas
Num televisivo programa de "Magazine Moda" intitulado, uma senhora-de primeira dama proclamada, e de Maria Barroso chamada, falou tanto, e enalteceu estatuto de "primeira dama", que não me surpreendeu que, em um qualquer dia, o Santo Padre santifique e institucionalize o "Dia de Nossa Senhora da Primeira Dama". Para uma necessária canonização, foram tantas as razões apresentadas, os sacrifícios expressos, que são quase desnecessários perante o sofrimento, por um duro protocolo imposto às primeiras damas que quiserem ser recebidas num império de estranho sentidos, à luz do sol nascente, ou para permitida entrada no real e hedónico Buckingham Palace, tenham de a cabeça flagelar com pesado chapéu, ou serem obrigadas ao alérgico das luvas de pelica.
A primeira dama terá uma qualquer razão quando afirma ser inconcebível não existir nesta terra liberal, laica e libertina República, um subsídio para ajudar a custear o elevado preço dos vestidos duma primeira dama-lacuna que atribui à nossa recente e incipiente democracia, argumentando que assim não sucede na avançada e revolucionária França. Aí, a nossa primeira dama terá que reconhecer que os franceses tiveram uma longa tradição democrática, que lhe vem lá de longe, muito detrás; certamente se recorda que há mais de duzentos anos, um célebre médico francês-Dr. Gillotin-criou um eficaz asséptico e indolor processo cirúrgico, transformou o banal homem francês no democrático acéfalo homem novo.
Aqui no bairro que habito, de Casal do Pinto intitulado, vivem muitas primeiras damas, que fazem dos seus dramas a sua alegria de viver. São místicas mulheres, cujas máximas se resumem ao ordinário palavrão numa rotina diária, numa transcendente magia, numa repetição continuada, executam o fantástico "milagre da multiplicação" dum mísero ordenado, que lhe permite comprar alguns pães e peixes, com que alimentam as suas prolíferas ninhadas.
Neste último domingo, uma dessas mulheres, que julgo não ter qualquer apelido, muito menos um pomposo como o de Barroso, Freitas, Cavaco ou Sampaio-chamava-se ela simplesmente Maria, ou carinhosamente tratada, por aqueles que a conheciam, de "Maria da Água". Era tão velha que já tina esquecido a idade e a dura erosão dos tempos tinha-a desgastado e transformado em frágil pluma, que calcorreava as gastas pedras das ruas, desde a madrugada até à negra e escura penumbra da noite. Julgo nunca ter sido convidada para tomar chá em Buckingham Palace, visitar o Império do Sol Nascente ou vestir roupa Coco Chanel. Neste meu velho bairro, todos a conheciam inclusive os animais, que ela alimentava e amava. No último domigo, quando acariciava famintos cães, um traiçoeiro comboio trucidou-a.
Maria, Maria, Maria, ... Maria da Água, que neste tórrido e térreo inferno saciaste a sede a tanta gente, se houver uma justiça divina e uma eterna compensação, tu serás, no destino do Além, uma grande primeira dama!
Fernando Pinto da Silva
Lisboa
Retirado do jornal Público, 19 de Setembro de 1993

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